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Uma terra sem pai nem marido, uma sociedade matriarcal

(Texto original de Laura Ancona Lopez)


A China é, de longe, um país de homens. E não só na quantidade, já que eles são a maioria. Na política, na vida doméstica e na sociedade em geral, é a figura masculina que dita as regras. É raríssimo ver uma mulher fumar, beber ou sentar sozinha em um bar ou restaurante. Mesmo com a abertura econômica, a China continua sendo um país dominado pelos homens. Por isso, é surpreendente encontrar ali um povo como o moso. Habitante de uma cidade à beira do lago Lugu, no sudeste, ele vive numa sociedade matriarcal, em que as mulheres têm voz, a sexualidade é encorajada desde cedo e não existe a figura do pai. Elas são as provedoras da família.


Tudo na vida dos mosos é diferente do resto da China – e de grande parte do mundo. Dois dos maiores símbolos de poder de uma sociedade – a propriedade privada e o nome de família – são passados de mãe para filha. As mulheres fazem o trabalho pesado: enquanto cuidam das plantações de arroz, os homens ficam em casa, com as tarefas do lar. Eles raramente vão para lavoura e sempre sob o comando delas. Não existe repressão sexual. Pelo contrário, elas podem se relacionar com quem bem entenderem. Depois de escolhido o parceiro, ele deve visitar a pretendida ao anoitecer e ir embora antes de amanhecer. Senão vira motivo de chacota na cidade


Não existem relacionamentos convencionais. Casamento, nem pensar. As mulheres podem ter múltiplos parceiros, mas nunca irão morar com um deles. Os filhos que elas gerarem “pertencerão” apenas à família da mãe. A única figura masculina pertinente às crianças é a do tio, irmão da mãe. É ele que cumpre o papel de pai. “É típico do sistema matrilinear que os tios cuidem dos filhos da irmã”, explica a antropóloga Josildeth Gomes Consorte, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.


As diferenças não param por aí. Fisicamente, os mosos também divergem do resto da população chinesa. De ascendência hindu e tibetana, eles têm a pele mais morena e são altos, com o rosto alongado e os olhos maiores do que a média da China. Instalaram- se há centenas de anos em um vale ao redor do lago Lugu, próximo à fronteira de Mianmar (antiga Birmânia). Hoje, são pouco mais de 30 mil habitantes. Os costumes se mantiveram intactos devido ao difícil acesso ao vilarejo. O centro urbano mais próximo – Lijiang, ou a “cidade das lanternas vermelhas” – fica a mais de oito horas de carro por uma estrada sinuosa e de terra.


Com todas essas particularidades, não é de espantar que as mulheres moso sejam mais extrovertidas que a maioria das chinesas, quase sempre sisudas, e que os homens tenham um perfil tímido, quase submisso. O difícil é entender como os mosos chegaram a uma sociedade estruturada dessa maneira.


Os registros escritos são poucos, e as causas, incertas. Sabe-se apenas que eles chegaram à região fugidos das inúmeras guerras. “É provável que tenha existido uma assimetria muito grande entre o número de homens e mulheres. Quando isso ocorre, uma das soluções para sobreviver é o matriarcado”, afirma Josildeth.

Existem diversos apelidos para a cidade à beira do lago Lugu: País das Filhas, Reinado das Fêmeas, Terra das Mulheres. As habitantes parecem se orgulhar desses títulos. A-Ke Dama, 27 anos, mora em uma casa em frente ao lago, junto com a mãe, A-Ke Bingmanamu, a chefe da família. Apesar de usar roupas ocidentais, Dama preza as tradições do povo moso e faz questão de passá-las adiante. Ela tem dois filhos pequenos: DinZi Renzong, um garoto de 4 anos, e Dinzi Yangzong, menina de 1 ano. Dama não quer aumentar a prole e, para se proteger, toma anticoncepcional. Seu irmão, A-Ke Cer, é quem cuida os afazeres domésticos.

“Tenho consciência de que a maneira como vivemos é muito diferente do resto do mundo”, diz. “Mas somos muito felizes.” Seus dois filhos são do mesmo pai, um fato pouco comum na região. Apesar disso, o “casal” não mora junto, não se vê todos os dias e ele não exerce o papel de pai – mesmo encontrando as crianças com alguma freqüência. “Já estamos juntos há alguns anos, mas só nos vemos quando temos vontade. Somos amigos, conversamos muito”, conta. E, mostrando uma maturidade surpreendente, ela afirma: “A maneira como as pessoas se relacionam fora daqui é triste.


Para ficar junto, é preciso fazer um juramento perante a lei. Isso é uma pressão enorme para o casal. No meu caso, só dá certo porque não existe isso. Ele não faz parte do meu dia-a-dia. Nós nos encontramos à noite, poucas vezes por semana, quando queremos”.

Apesar de ser pouco conhecida, a sociedade moso já virou tema de um documentário. Os belgas Thomas Lavachery e Eric Blavier decidiram passar uma temporada no lago Lugu. O resultado foi a obra A World Without a Father Nor Husband, de 2000. “Sou um historiador de arte e meus professores apresentavam o casamento como um cimento incontornável da sociedade humana. Por isso, a ausência de casamento aqui me intrigou tanto. Tudo indica que os mosos são uma exceção à regra”, conta Lavachery. O que mais chamou a atenção da dupla foi a liberdade feminina. “As mulheres são orgulhosas, empreendedoras e livres em seus amores. Sem casamento, a escolha de parceiros é guiada pelos sentimentos, não pelas considerações econômicas – o que é válido também para os homens”, diz Lavachery. Ao mesmo tempo, os homens pareceram ressentidos. “Eles não são tão felizes quanto as mulheres, alegres e comunicativas. A condição feminina me pareceu invejável.”


Nem a Revolução Cultural, nos anos 1960, abalou essa sociedade. Por um tempo, representantes do governo comunista forçaram os namorados informais a se casarem e a viverem juntos e reprimiram a liberdade sexual. Porém, assim que viraram as costas, os mosos retomaram os antigos hábitos. “Todos voltaram para a casa materna e tudo ficou como antes”, relata Lavachery.


Com a abertura da China ao turismo, isso pode mudar. “O que a força e a ameaça do governo não conseguiram realizar, a influência de filmes, jornais e turistas está a ponto de conseguir. Na minha opinião, o que resta da cultura antiga vai desaparecer”, diz Lavachery. Mas a antropóloga Josildeth não concorda. Para ela, é impossível prever algo do gênero. “O fato de os mosos passarem a se vestir como ocidentais e adquirirem alguns hábitos nossos não significa, de forma alguma, que vão mudar. A identidade étnica desse povo é muito forte e sobrevive há mais de mil anos. Tudo indica, portanto, que ela pode continuar”, afirma. “Eles são felizes dessa maneira e já resistiram a todo tipo de investida para destruir seus hábitos.” Só o tempo dirá se os homens mosos um dia conseguirão transformar essa terra num lugar onde pais e maridos tenham voz.

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